Artigo por Anna Ferrazza na Revista Medscape
O mundo está vivendo o maior número de conflitos desde a Segunda Guerra Mundial. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), em 2023, seis a cada sete pessoas no mundo vivem com o sentimento de insegurança, e cerca de 2 bilhões — um quarto da população global — vivem em locais afetados por conflitos. Cerca de 14% dos habitantes do planeta vivem a cinco quilômetros de distância de conflitos violentos.
Além dos impactos visíveis causados pela violência, esses eventos geram danos na saúde mental daqueles que passam por situações traumáticas, e também na de seus descendentes. Na década de 1970, estudos iniciais analisaram o impacto do Holocausto, genocídio que causou a morte de 6 milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945), nos filhos de sobreviventes de campos de concentração.
Esses estudos deram o pontapé inicial para a compreensão sobre como pessoas que apresentam transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) podem ter modificações na expressão gênica sem apresentar alterações no seu DNA — definição de epigenética — e passar essas mudanças para os seus filhos.
Recentemente, um novo estudo sueco publicado no periódico JAMA Psychiatry [1] buscou avaliar essa relação e esclarecer a importância relativa dos genes e da criação na “transmissão” desses distúrbios. O estudo olhou para seis tipos de configurações familiares diferentes:
- as “completas”, com mãe e pai biológicos;
- as que não incluíam pai biológico;
- as que não incluíam mãe biológica;
- as que incluíam padrasto;
- as que incluíam madrasta; e
- as com filhos adotivos.
A pesquisa se destaca pela amplitude da população analisada: 2.194.171 indivíduos.
É importante ressaltar que os dados foram coletados a partir de registros nacionais suecos e os casos de resposta adversa ao estresse e de TEPT foram identificados pela Classificação Internacional de Doenças (CID). Os autores incluíram todos os indivíduos nascidos na Suécia entre 1960 e 1992 que estavam vivos e que residiram no país pelo menos até os 20 anos de idade.
Segundo o Dr. Welington dos Santos Silva, médico e psicólogo que estuda a transmissão intergeracional de traumas, pesquisas como a publicada no periódico JAMA Psychiatry são importantes para levantar hipóteses. Porém, os dados usados são secundários e não há controle sobre a qualidade original das informações analisadas.
O estudo concluiu que os diagnósticos de resposta adversa ao estresse ou TEPT demonstraram que houve a transmissão intergeracional, incluindo correlações genéticas e de criação. As análises sugeriram que eventos traumáticos compartilhados foram parcialmente responsáveis pelas correlações observadas na criação dos filhos.
De acordo com o Dr. Welington, o estudo é mais uma evidência que respalda o conhecimento existente sobre transmissão intergeracional de traumas. Ao mesmo tempo, pesquisas realizadas com veteranos de guerra e pessoas que viveram episódios traumáticos ao longo da vida mostraram que, em vez de haver uma alta prevalência de eventos negativos, a maioria dessas pessoas desenvolveu a resiliência para lidar com as adversidades.
“As alterações epigenéticas são mais frequentes nesses grupos, mas o que chama a atenção é a resiliência. Há indícios de maiores chances para se desenvolver o TEPT, mas são muitas as variáveis para isso acontecer. Depende do tipo de trauma e dos recursos emocionais que cada pessoa tem, dos modelos [comportamentais] que ela recebeu ao longo da vida”, afirmou.
Em termos de epigenética, a expressão de alguns genes é ativada ou desativada de acordo com os acontecimentos ao longo da vida de cada um. Segundo o Dr. Marcelo Feijó, psiquiatra e docente responsável pelo serviço ambulatorial do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina (Unifesp), é possível comparar a influência da epigenética no surgimento de TEPT com o impacto que os hábitos alimentares têm na incidência do transtorno.
Se, desde a infância, uma criança tem predisposição genética para diabetes e sua dieta for rica em açúcar, ela terá mais chances de apresentar a doença do que outra criança com o mesmo gene, mas que não teve o mesmo estímulo alimentar.
De acordo com o Dr. Marcelo, os filhos de pessoas que viveram abusos e situações de estresse ao longo da vida apresentaram algumas alterações biológicas, como no sistema de resposta hormonal ao estresse com a liberação de cortisol. Outras alterações identificadas estão relacionadas à imunidade, ao metabolismo, a modos de criar vínculos e ao sistema de ocitocina.
Outro ponto de destaque é que novas evidências mostram que traumas vividos por gestantes tiveram impactos nos seus bebês ainda durante a gestação. [2] “Quando vemos uma menina ou mulher grávida e sabemos que há um histórico de abuso, além do tratamento que precisa ser feito com ela para alguma possível consequência psicológica, temos que cuidar do bebê com mais afeto do que o normal”, disse o Dr. Marcelo.
É preciso implementar medidas de enriquecimento ambiental, favorecer o cuidado, o suporte, o carinho e garantir que a criança terá segurança emocional desde cedo para diminuir o impacto que as transmissões de problemas associados a traumas podem ter. “Com o conhecimento sobre situações traumáticas, temos que cuidar de mães e bebês de forma especial no sentido de suporte, acolhimento e avaliações médicas”, aponta.
Para o Dr. Marcelo, é possível perceber a transmissão dos traumas no sistema de defesa dos indivíduos. “A criança pode chorar muito, não dormir, demonstrar sinais de estar sempre irritada. Há diferenças entre os bebês, mas, sem os devidos cuidados, a tendência continuará na adolescência”, afirmou.
Por isso, intensificar os cuidados é uma forma de fazer com que a criança aprenda a controlar melhor as emoções e a ter relações mais saudáveis ao longo da vida. Uma pesquisa feita na Universidade de São Paulo (USP) analisou como a exposição de gestantes a fatores ambientais e psicossociais pode aumentar o risco de transtorno do espectro autista (TEA) nos filhos. [3]
De acordo com a Dra. Anita Brito, Ph.D., neurocientista vinculada ao Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e ao Institut Pasteur de São Paulo, o distúrbio está ligado a fatores genéticos e ambientais. “O TEPT pode passar para a mulher, que fica grávida. A reação no corpo somada ao antecedente familiar é suficiente para gerar [filhos com] TEA, que tem muitos subtipos”, disse a neurocientista.
Para ela, também é importante checar se grandes eventos aconteceram durante a gestação, como a perda de emprego, dificuldades financeiras e emocionais, morte na família, entre outros tipos de sofrimento. É importante que os médicos estejam bem preparados para receberem as mães que fizeram planejamento familiar ou não, para que o pré-natal seja o melhor possível.
Traumas coletivos
Assim como o estudo sobre a transmissão intergeracional de trauma começou com os sobreviventes do Holocausto, a expansão contínua do conhecimento nessa área ganha destaque quando ocorrem eventos que afetam comunidades inteiras. É o caso do rompimento da barragem de rejeitos de extração de minério de ferro que ocorreu em Brumadinho em 2019, por exemplo, ou das enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul neste ano. Logo na sequência dos acontecimentos, uma das primeiras preocupações foi com a prestação de serviços de saúde mental aos atingidos.
Ao mesmo tempo que há um impulso imediato de fazer algo para minimizar os danos emocionais nas pessoas, é preciso esperar para avaliar como cada um reagirá após uma tragédia. “Como o trauma será elaborado pelas pessoas é o que determinará se a experiência será traumática ou não. É ruim para todo mundo, mas algumas pessoas conseguem superar o fato e outras, não”, disse o Dr. Marcelo.
No estudo realizado com sobreviventes do Holocausto, aqueles que enfrentaram o trauma e falaram sobre ele apresentaram melhor recuperação ao longo dos anos. Em contrapartida, aqueles que evitaram falar sobre o episódio geraram mais consequências negativas para as gerações seguintes.
“Em catástrofes, precisamos dar apoio às famílias e ter um olhar mais dedicado àquelas que não estão indo bem. Caso contrário, o trauma passará de geração em geração como algo muito ruim que destruiu a família”, explica o psiquiatra.
Segundo o Dr. Marcelo, é esperado que as pessoas apresentem sintomas após o trauma, como insônia, crises de choro e tristeza. Contudo, eles diminuem na maior parte dos casos e somente 10% desenvolvem sintomas de TEPT. Por isso, o tratamento é importante para que o problema não se torne crônico.
Para o Dr. André Monteiro, doutor em psicologia e atual presidente da Associação Brasileira de EMDR (sigla do inglês eye movement desensitization and reprocessing), a preocupação com a saúde mental da população ganhou protagonismo após a pandemia de covid-19.
Segundo ele, em vez de responsabilizar o indivíduo pelas suas reações a um problema, é essencial olhar para as circunstâncias de vida dessa pessoa, como o local onde ela vive, o ambiente familiar, o estilo das relações, as adversidades e os comportamentos de seus pais.
“Quando investigarmos o histórico da pessoa que precisa de atendimento, temos que ir além das questões da infância e entender se outras pessoas da família viveram o mesmo problema. Isso garante a ampliação do foco de análise, de observação e intervenção, com uma atitude mais sistêmica”, disse.
Ainda, o Dr. André defende que as ações devem ir além de avaliar somente a transmissão e que é preciso entender como interromper esse ciclo. “Um dos caminhos é, justamente, o reprocessamento das memórias traumáticas”, aponta.
No caso de uma mulher que viveu uma situação de abuso, por exemplo, o constante estado de alerta para perigos iminentes pode se tornar uma compreensão de que “as pessoas são confiáveis até que se prove o contrário”.
“Até mesmo nesses casos, a ênfase fica muito na mãe, o que sobrecarrega e culpabiliza essas mulheres. Se as mães e os pais receberem tratamentos adequados, teremos um efeito preventivo de longo prazo para evitar a transmissão [de traumas]”, concluiu o Dr. André.